QUAIS AS DIFERENÇAS ENTRE SAMBA E MARCHA? POR CLÁUDIO SOUZA


Pela própria natureza do site, é razoável partirmos do princípio de que a maioria dos participantes desse fórum sabe identificar com certa precisão um samba. Mas será que as mesmas pessoas conseguem reconhecer com a mesma facilidade uma marcha ? Mais do que isso : sabem identificar as diferenças musicais entre os estilos ?

Acredito que a maioria dos indivíduos , nas primeiras décadas do século XX, quando as escolas de samba ainda não existiam e mesmo o samba, tal como o conhecemos hoje, tampouco era a trilha sonora das festas populares, era capaz de, ao ouvir uma marcha, associá-la ao gênero musical de origem européia, tão remoto que já era usado na Roma Pagã para marcar o ritmo dos passos dos soldados, seja nas longas caminhadas , seja nos desfiles militares.

Nos idos das décadas de 10 ou 20 do século passado, e muito antes delas, claro, a marcha era um gênero extremamente conhecido , principalmente pelo resultado da incursão de grandes compositores eruditos no gênero, tais como Wagner e Chopin, resultando em obras que vieram a se tornar eternas, na forma de marchas fúnebres, marchas nupciais e hinos, apenas a título de exemplificação.

A popularização e o crescimento do carnaval de rua, com cordões e, mais tarde, os blocos de sujo , viram as marchinhas de carnaval se tornarem o gênero mais popular e uma das principais marcas da folia, a ponto de os grandes da MPB fazerem questão de reservar-lhes espaço em seus repertórios.

Hoje, a realidade do gênero é outra. Se há poucos compositores famosos que se arriscam a produzir obras novas no estilo, há também um público que não parece sentir falta das marchas nas listas de músicas dos seus tocadores de mp3. Em 93, Chico Buarque gravou uma de suas tantas obras-primas em ritmo de marcha-rancho, mas poucos devem ter percebido isso em meio à letra arrebatadora e ao sutil arranjo no estilo bossa nova de "Futuros Amantes". Caetano, um pouco antes, e com menos brilho, talvez, arriscou-se em outra marcha-rancho ao compor "Branquinha" para o disco "Estrangeiro", de 1989.

Como se pode notar, com tão raros exemplares recentes de sucesso, não é de se admirar que as pessoas, ao associarem a palavra "marcha" a um gênero musical, lembrem-se necessariamente das marchinhas de carnaval das antigas que, não por acaso, são repetidas "ad nauseum" nos bailes de carnaval, há décadas, sem que haja uma renovação de repertório.

Arrisco-me a dizer que talvez a maioria não identifique como  marchas os hinos de países e até os hinos dos clubes de futebol dos quais são torcedores. Quero chegar com isso a uma afirmação que acredito ter um elevado conteúdo de verdade : a maioria das pessoas associa marcha a um repertório consagrado de canções, não mais a um gênero com características musicais próprias.

Em função disso, é bastante provável que uma canção nova no estilo marcha não seja reconhecida como tal pelos atuais ouvintes, tal como aconteceu com "Futuros Amantes". Embora tenha sido canção de grande sucesso, não ouvi ninguém se referir a ela, além do próprio Chico Buarque em entrevista, como uma marcha-rancho.

Lendo os calorosos debates em torno dos sambas-enredo para o carnaval de 2012 e a antiga discussão a respeito da descaracterização dos sambas tradicionais pelo marcheamento, percebo a dificuldade que muitos têm em diferenciar o samba tradicional, sincopado, das acentuações naturalmente quadradas das marchinhas que, insidiosamente, foram sendo introduzidas nas escolas de samba a partir de meados da década de 80, possivelmente como uma forma apelativa de atiçar a animação e angariar simpatia das arquibancadas.

Percebo também que, descontadas as manifestações fundadas no fanatismo que alguns nutrem por suas escolas de coração, há uma reação natural de repulsa ao tema, talvez pela forma contundente com que Fernando Pamplona, eterno defensor da forma mais pura do samba-enredo, sempre apresentou seus argumentos e suas críticas à aceleração exagerada do andamento das baterias e da adoção de partes marcheadas nos sambas de enredo. Se em tempos politicamente corretos como os de hoje, mesmo a crítica mais suave é acolhida como ofensa, o que dizer da crítica ácida, do argumento incisivo, da fina ironia ?
A defesa do samba-enredo tradicional não é uma empreitada desprovida de propósito. Ela visa, antes de tudo, a defender a integridade de um gênero rico, de estirpe genuinamente brasileira, e que foi o grande elemento aglutinador e propulsor do nosso espetáculo maior. Afirmo isso porque, muito antes que as super escolas de sambas S/A e suas super alegorias se tornassem o modelo dominante, no velho Estácio de outrora e , pouco depois , em Mangueira e em Oswaldo Cruz, as pessoas começaram a se reunir em préstitos tendo como único e grande motivo, a bela, revolucionária e inovadora forma musical do samba moderno.

Mais de 80 anos depois, após tantas conquistas, no nosso espetáculo mais popular e grandioso, querem trocar o samba, que venceu a triste realidade da pobreza, da marginalização e do preconceito apenas com a determinação dos sambistas e seu inegável valor cultural, por um gênero alienígena, mais pobre e sem identificação com as nossas raízes.

Alguns, por ignorarem a origem histórica e o glorioso passado do gênero samba-enredo, outros por mera ambição mercadológica e interesses mesquinhos, vêm , gradualmente, forjando formatos rígidos, empobrecendo padrões rítmicos e melódicos, deixando de lado o lirismo. O resultado , há mais de trinta anos, é um legado praticamente desprezível de canções que são esquecidas tão logo termina o desfile, ao contrário do que acontece com as obras notáveis compostas entre o final dos anos 60 e meados da década de 80.

Antes que se trate das diferenças, vale a pena apresentar as semelhanças (na verdade, a única semelhança) entre samba e marcha moderna: ambos os estilos fazem uso do compasso 2x4, chamado também de compasso binário, sendo o primeiro tempo, forte e o segundo, fraco.

A partir daí, as diferenças rítmicas, principalmente, são enormes. A principal delas, diz respeito à ocorrência da síncope que, no samba, é elemento fundamental, caracterizador mesmo, enquanto que, na marcha, é ocorrência ocasional.

De uma forma quase simplória, se pode definir síncope como o deslocamento das notas da melodia, dos acordes e das batidas dos instrumentos rítmicos para momentos anteriores ou posteriores à pulsação elementar do compasso. Em outras palavras, na síncope, as notas e as batidas não soam nas "cabeças" dos tempos do compasso (no caso do compasso binário, as notas e as batidas não soarão no 1, 2 , 1, 2 da contagem do tempo do compasso, mas um pouco antes ou um pouco depois deles) , dando à música uma sensação de balanço, de suingue.

Essa é uma herança típica da cultura dos povos africanos que povoaram o novo mundo, daí a prevalência da síncope em estilos como a salsa e a rumba caribenhos e o jazz, o soul e o funk americanos. A música européia tradicional, principalmente a música clássica, embora possua inegável riqueza harmônica e melódica, é música de "cintura dura", sem suingue, justamente por não fazer uso freqüente da síncope.
Por ser de origem essencialmente européia, o gênero marcha é desprovido desse balanço, dessa malemolência, sendo essencialmente mais "duro" que o samba. Enquanto a marcha acaba levando as pessoas a pular, o samba provoca uma sensação de requebro, a uma vontade de...sambar (que palavra conseguiria expressar melhor a sensação irresistível que se sente ao se ouvir um samba de raiz ? Só não entende isso quem não é capaz de , ao menos, improvisar um miudinho sem sair do ritmo).

São grandes e quase intransponíveis os desafios de tentar explicar essas questões fundamentais de teoria musical para um público leigo a partir de um texto, sem a utilização de recursos sonoros , ainda que mínimos. Uma forma bem simples de diferenciar os estilos, ao menos ritmicamente, é usar as duas mãos em alguma superfície que produza som percussivo (uma mesa de madeira, por exemplo) e tentar cantar e batucar o hino do seu clube de coração. No meio da empreitada, pare de cantar. O que sobrará é a marcação básica da marcha.

Agora, tente fazer a mesma coisa com um samba de que você goste muito. Compare a batida de samba que você faz com as mãos, com a batida feita anteriormente para hino do seu clube, que é , certamente, uma marcha. Dessa maneira, não há dúvida, ficarão claras as diferenças.

Proponho, agora, um exercício um pouquinho mais complexo. Reproduza, do mesmo jeito, com as mãos em batuque, a batida de marcha. Sobre ela, tente cantar um samba-enredo bem tradicional que você conheça. Por exemplo, "Lendas e Mistérios da Amazônia" ou "Aquarela Brasileira" ou "Baía de Todos os Deuses". Tente cantar, sem alterar a acentuação da melodia, ou seja , sem tentar adaptar o ritmo da melodia à batida de marcha que está fazendo. É possível ? Afirmo, sem presenciar a sua tentativa, que não. A melodia de um samba-enredo , sincopada, não consegue se ajustar à camisa de força rítmica da marcha. Da mesma maneira, a dura melodia da marcha, para ser executada sobre uma batida de samba, precisa ser "amaciada", precisa de um toque de malemolência para funcionar.

Se você conseguiu reproduzir com sucesso esses exercícios simples que propus, será capaz, a partir de agora, de avaliar as obras das escolas de samba e distinguir os sambas-enredos genuínos dos sambas marcheados ou mesmo das marchinhas completas que muitas das agremiações têm escolhido para embalar seus carnavais.

Reproduzam a batida básica de marcha e comecem a cantar , por exemplo, o refrão principal de "Peguei Um Ita No Norte", do Salgueiro ("Explode coração na maior felicidade...), ou o refrão mais famoso de "Festa Profana", da União da Ilha (Eu vou tomar um porre de felicidade...), ou ainda os refrões da São Clemente ou do Salgueiro para o carnaval de 2012. Não demorarão a concluir que, embora muito apreciados por alguns (ou muitos), se tratam de sambas marcheados.

"Peguei Um Ita No Norte" e "Festa Profana", assim como "O Tititi Do Sapoti", embora marcheados, acabaram por cair no gosto popular, mas essa não é a regra em se tratando de marchinhas. Com exceção dessas e mais uma ou outra que nesse momento pode estar me escapando da memória, a esmagadora maioria dos sambas marcheados caíram no ostracismo. Muitos foram feitos na tentativa de "animar a galera", mas renderam desfiles borocoxôs. Tudo isso nos leva a concluir que não foi o estilo adotado, no caso, marcha, que levou as obras do Salgueiro de 93, da Ilha de 89, ou da Estácio de 87 a caírem no gosto popular, mas sim o talento melódico dos compositores que acabaram produzindo marchinhas de qualidade, mas marchinhas, que não condizem com a rica tradição do samba-enredo e com a história das escolas e de seus desfiles. Poderiam eles, ao contrário, terem se esforçado um pouquinho mais e conformado as boas melodias que produziram a um balanço de samba, já que o sucesso teria sido o mesmo.

Antes que protestem, os exemplos acima foram escolhidos ao mero acaso e por razões didáticas. Não há escola no especial que não tenha em sua história um episodio ao menos de marcheamento de samba, mas nem sempre isso é fácil de ser reconhecido pelo ouvinte, porque , na maioria dos casos , embora a melodia tenha construção de marcha, na produção do CD usa-se uma série de disfarces para atenuar o caráter marcheado das composições. Entretanto, na avenida, esses recursos são abandonados e , com a aceleração do andamento (necessária para a passagem de cortejos cada vez maiores, dentro do tempo regulamentar) , acaba se revelando a verdadeira natureza marcheada da obra.

Espero ter contribuído para o melhor entendimento dessa questão que, como disse, considero fundamental para a preservação da riqueza maior do desfile das escolas de samba, que é o samba-enredo. Não tenho a pretensão de esgotar o assunto, mas espero, sinceramente, que o debate, a partir da leitura desse texto, possa ser um pouco mais objetivo e cada vez menos desprovido de fanatismos e idéias rígidas e pré-concebidas.

Publicado em 19/12/2011 no Espaço Aberto, do site Galeria do Samba:
http://galeriadosamba.com.br/V41/AM.asp?ââíõõúí32

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